quinta-feira, 7 de agosto de 2014

COMO E PORQUE DESCOBRI O APAIXONANTE HÁBITO DA LEITURA.

Sou daquelas pessoas que, hoje, acredito raras, que não suportam a ideia de não ter um livro sempre à mão, esteja onde estiver. Carrego livros na mochila, no carro, eles estão espalhados por todos os cantos. Em casa, várias vezes por dia dou uma “namorada” nas minhas estantes, a parte mais sagrada do lar, a minha igreja pessoal.

Não consigo conceber um ser humano que não lê um livro. Isso me soa absurdo. Fico chocado com as desculpas esfarrapadas que ouço, “não tenho tempo”, “ele é muito grande”, “vou ler o resumo”, “não gosto de ler” e outras pérolas de uma sociedade vazia, tola e superficial. Vivemos em tempos de novas tecnologias, da chamada era digital, onde todos estão logados e conectados o tempo inteiro.

Aqueles “15 minutos de fama” que Andy Warhol profetizou nos anos 1960 que todos teriam são realidade hoje. Todos tem acesso a uma quantidade fenomenal de informações. O problema é separar o “joio do trigo”. Tem muita porcaria na internet. Infelizmente muita gente trocou o livro pelo Wikipedia, nem sempre confiável. As pessoas tem preguiça mental de ler. Sou acusado com frequência no facebook de escrever demais. Garotos me dizem que não lêem meus textos, porque “são muito longos”. Chocante.

Considero isso um problema grave de nossos tempos. Ninguém se aprofunda em nada, superficialidade é a palavra de ordem. Era da Idiocracia.

Bom, mas eu devia estar me atendo ao tema do meu “post”, desviei e acabei sendo um pouco rabugento. Vosso blogueiro pede desculpas.

Como afirmei no título uma das maiores verdades sobre a leitura é que ela é um hábito. E esse hábito pode ser ensinado e incentivado. Isso é estupendo. Vou resistir a tentação de, mais uma vez, desancar os ignorantes de hoje em dia para explicar como isso se deu comigo.


Enciclopédia Britannica, sonho de consumo na era pré-internet.



Quem nasceu nos anos 1960 e 1970 muito provavelmente teve em casa uma enciclopédia. Ah, as enciclopédias "Britannica" e a "Barsa" eram objetos de desejo. A "Britannica" foi a primeira enciclopédia do mundo, editada em 1768 no Reino Unido. Sua última edição foi em 2010, tinha 32 volumes e pesava 130 quilos. Em março de 2012 a "Britannica" encerrou sua publicação em papel, depois de 244 anos ensinando gerações. Meu pai acabou comprando uma versão mais barata, mais modesta, a Enciclopédia Abril, que continha 15 volumes.



Enciclopédia Abril, a primeira que ganhei.




Na era do Google um garoto hoje provavelmente nunca viu uma enciclopédia na vida. Basta explicar que não existia internet, nem computadores em casa, os “PC” só chegariam aos lares brasileiros nos anos 1990.

Fiquei fascinado com a minha enciclopédia. Comecei no volume 1 e fui lendo todos os verbetes. Eu devorei aquilo com afinco. A descoberta de um mundo novo e admirável. Em 1982 morávamos em Cuiabá/MT e meu pai foi transferido para Belo Horizonte logo no começo do ano. Eles me inscreveram na prova de seleção do Colégio Salesiano, que tinha a fama de ter um excelente ensino e uma prova de admissão aterrorizante.


Fachada do Colégio Salesiano nos dias atuais.



Aprovado com louvor, modéstia à parte, se me permitem esse pequeno e "pecaminoso" arroubo de vaidade, ingressei no Salesiano, o velho Salê. O colégio era um mundo inteiramente novo e imenso pra mim, nunca tinha estado em algo parecido. Me senti um pouco como o garoto da música em “O Reggae”, de Renato Russo:


“Ainda me lembro aos três anos de idade,
O meu primeiro contato com as grades,
O meu primeiro dia na escola,
Como eu senti vontade de ir embora...”


Acreditem, eu era incrivelmente tímido e essa foi uma experiência que me marcou muito. Como disse antes o colégio era imenso, turmas de maternal, desde a creche, de primeiro grau, das antigas 1ª a 8ª séries e o segundo grau com os 3 anos, sendo o terceiro integral, aulas o dia inteiro.


O Salesiano de BH hoje em dia.



Era uma escola católica, da ordem dos Salesianos, fundada pelo padre Dom Bosco. Havia também um seminário no último andar do prédio maior. Esse andar era proibido aos alunos. Sempre ficávamos pensando o que acontecia ali.

Eu ingressei na 4ª série. As coisas pareciam piorar a cada dia. Até que fiz uma descoberta que mudou minha vida. A professora de português Márcia nos apresentou a biblioteca do colégio. Fiquei maravilhado, era uma daquelas bibliotecas imensas, enormes, que vemos em filmes antigos, estantes de madeira a perder de vista. (Vi recentemente pelo website do colégio que a biblioteca está bem diferente, parece menor, ou será que a idealizei em minhas lembranças?) 

Foi uma aula inteira lá, aprendendo a como localizar livros por temas, assuntos, matérias, etc. Conheci ali uma pessoa que teria um papel fundamental em minha educação e em minha vida: a bibliotecária, a inesquecível dona Tereza. Que saudade sinto dela ao escrever essas linhas.


Pelo site do colégio a biblioteca atual me parece totalmente diferente das minhas lembranças.



Bom, mas voltando ao assunto a dona Tereza nos explicou que poderíamos pegar livros emprestados na biblioteca do colégio. Uau!!! Tínhamos de fazer uma ficha , fui o primeiro a fazer a minha. Era daqueles fichários antigos, de metal, na ficha ia sua foto e demais dados do aluno, e se lançava nela os livros emprestados com as datas de empréstimo e de devolução.

No dia seguinte fui a biblioteca e pedi ajuda à dona Tereza. O que eu deveria começar a ler? Ela me apresentou a uma coleção muito antiga, das obras completas de Monteiro Lobato. Nas semanas seguintes eu devorei aqueles livros. Lia vorazmente e quase nunca pedia extensão do prazo de 10 dias do empréstimo original. Normalmente eu entregava o livro antes. O cheiro do livro velho era viciante.

De Lobato pulei para Ziraldo, “Meu Pé de Laranja-Lima”, Autran Dourado, Orígenes Lessa, li toda a “Coleção Vaga-Lume” bem como a coleção “Para Gostar de Ler”, “Robinson Crusoé”, “A Ilha do Tesouro”, tudo de Jules Verne e tantos outros clássicos infanto-juvenis. Os anos se passavam e eu ia amadurecendo entre aquelas estantes de sonho da biblioteca. Eu viajava sem sair de BH, percorria todo o mundo em minhas leituras, eu estava em outra dimensão.

O colégio fazia um concurso de leitura, para os alunos que lessem o maior número de livros no ano. Ganhei esse prêmio diversas vezes durante todo o tempo que estudei lá.

De novo tenho de pedir desculpas, modéstia à máxima parte, os professores me achavam um tanto precoce. Eu estava sempre lendo livros que eles consideravam que não eram adequados à minha idade. Felizmente na biblioteca da dona Tereza não existia censura.

Descobrir bibliotecas era meu esporte favorito. Nessa época meu pai tinha um amigo que visitávamos sempre. Num dia, aniversário de um de seus filhos, aniversário de criança, que sempre odiei, ficava sempre perto dos adultos. Nesse dia eu deixei os adultos conversando e fui “explorar” a casa do amigo de meu pai. Descobri seu escritório e muitas estantes cheias de livros. Escolhi um livro, sentei no chão e comecei a ler.

Cerca de 2 horas depois estavam a minha procura. O amigo de meu pai me achou no chão do escritório e ficou surpreso com o número de páginas que eu tinha lido do livro.

A obra era o árido “Por Dentro do Terceiro Reich” de Albert Speer. O bom Dr. Márcio, amigo de meu pai, me deu esse livro de presente, dizendo que ele próprio nunca tinha conseguido ler. Foi o primeiro livro que iria compor minha futura biblioteca. Tenho um grande carinho por esse livro e o Dr. Márcio Mendonça é alguém muito especial pra mim.


Por Dentro do III Reich foi o primeiro livro de minha coleção.



Sendo meio precoce, eu já sentia uma dificuldade em aceitar nossa existência como nos era ensinada. Nunca me conformei muito em me conformar. Era tido como rebelde, nas aulas de religião, que eu sempre odiava, achava aquilo a maior perda de tempo, eu questionava tudo. Como eu lia muito, e de tudo, e cheguei a bater boca com os padres em diversas ocasiões, sempre tinha bons argumentos. Vosso blogueiro se revelava um guri insolente. Mas falava com embasamento, eu lia os livros deles. Acho que a bíblia, estudada a fundo e com rigor histórico, é a maior ferramenta de criar ateus do mundo. Se por um lado tenho as melhores lembranças possíveis do Colégio Salesiano, por outro ali eu aprendi a odiar padres e afins, por motivos que prefiro não revelar. Antes que alguém faça uma "gracinha" eu aviso que não fui vítima de pedofilia. (risos incontidos)

Aquela fase em que você não é menino nem homem, a chamada adolescência, trouxe muitas descobertas, a maioria delas vieram em forma de livros. Vou citar alguns livros que mudaram minha vida pra sempre. “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger foi um deles. O inesquecível Holden Caulfield, protagonista da obra, tinha 16 anos, e eu tinha 15 quando li o livro. Li e pirei. Aquilo foi incendiário e revelador. (Quase 30 anos depois eu reli o livro, esses dias, e ele continua mágico.)


Um dos meus livros favoritos desde sempre.



Em seguida li outro livro antológico: “O Encontro Marcado” de Fernando Sabino. Putz, eu me identifiquei com o Eduardo, eu sentia as mesmas angústias dele. Eu sentia aquela dor. Aí, talvez, esteja o maior motivo da minha paixão pelos livros: eu sou capaz de viajar nele, o livro me transporta para outro mundo, até hoje me encanto com isso. Alguns poderiam dizer que se trata de uma fuga, eu diria que é algo quase místico.


Igualmente marcante pra mim a obra-prima de Fernando Sabino.



Quais livros podemos e devemos ler? E qual será o melhor momento de ler? Não existe resposta para isso. Desde garoto tentei ler o máximo possível. Descobri a geração beat, Kerouac, Burroughs, Ginsberg. A poesia de Rimbaud, Baudelaire, Jim Morrison, T.S. Eliot, Neruda, Pessoa. Depois veio a fase da faculdade, livros de Economia, Marx, Engels, filosofia, Nietzsche, Kant, Sartre, Bertrand Russel, Foucault e outros. Depois livros de Direito.


Minha coleção sobre Jim Morrison e The Doors.



A turma falava em “livros de formação”. Ouvia o tempo todo: “você precisa ler esse”. Desde essa época eu já tinha uma extensa e ambiciosa “lista, ou fila, de leitura”. Era uma época em que não nos cansávamos de "ouvir falar em Freud, Jung, Engels e Marx, intrigas intelectuais rolando em mesas de bar", como Renato Russo cantava na música da Legião Urbana. Hoje isso morreu, as pessoas ficam ligadas apenas em seus iPhones.


Meus livros sobre a Legião, Renato Russo e o rock de Brasília.



Relembrando isso hoje não dá para negar uma pontinha de frustração em saber que nessa minha lista de leitura ainda constam alguns livros “impossíveis”, tais como “Em Busca Do Tempo Perdido” de Proust, “Ulysses” de Joyce, dentre outros. Tenho em casa todos eles e comecei a lê-los dezenas de vezes, sem conseguir ir adiante. Sim, isso me frustra. (Ainda não desisti, não posso morrer sem ler Proust e Joyce.)



Joyce e Proust continuam quase impenetráveis, são desafios que preciso vencer ainda.



Adulto li tudo de Ernest Hemingway, um dos meus autores favoritos, li Tolstoi, Dostoievski, Turgueniev, Nabokov, Hesse, Mann, Fitzgerald, Cervantes, Dumas, Victor Hugo, Rubem Braga (amo o velho Braga) e vários outros clássicos.


Minha coleção de Hemingway, um dos meus favoritos.



Depois do colégio fui para o Exército, para o Curso de Formação de Oficiais, no CPOR/BH. Eles tinham uma biblioteca sensacional. Descobri uma nova paixão: a História Militar. Clausewitz, Guderian, as batalhas de Napoleão, as duas guerras mundiais, Vietnan, etc.

Hoje procuro ler tudo que ainda não li e me interessa. Infelizmente sei que vou morrer sem conseguir fazer isso. Como leitor me tornei um bibliófilo, coleciono livros, minha pequena biblioteca cresce mas minha “fila de leitura” cresce ainda mais rapidamente. Comprar livros é uma de minhas atividades preferidas. Um leitor compulsivo me compreenderá. E sempre leio mais de um livro ao mesmo tempo. Atualmente estou lendo 5 obras simultaneamente.


Meus livros sobre Hitler e o Terceiro Reich.



Sou daqueles leitores antigos, preciso do livro de papel, que me perdoem os mais “moderninhos” ou mais “antenados” mas eu pretendo resistir até a morte aos insossos e-books. Quanto mais velho melhor é o livro, sou viciado em livros velhos e claro, em sebos. Se as pessoas pudessem saber como é revigorante e excitante passar uma tarde inteira garimpando preciosidades num bom e velho sebo. Saudades dos sebos de BH e de Sampa.


Parte de minha biblioteca.



Meus livros estão cheios de grifos, anotações, etc. Adoro quando releio um livro antigo e encontro anotações antigas, às vezes com muitos anos, é incrível rever essas ideias e sentimentos. Reler livros é outra prática que adoro. Algumas obras prediletas já li 3, 4 ou mais vezes.


Parte da minha coleção de marca-páginas. O de Firenze 2008 foi presente da Luc.



Uma outra coisa que agrada ao leitor aficionado são os marca-página. Tenho uma vasta coleção deles. Os principais museus do mundo vendem em suas lojinhas esses objetos às vezes ignorados. Sempre que viajo volto com muitos novos modelos. Muitos amigos trazem de presente esses marca-página, tenho até hoje um que minha amiga Luciana trouxe de Firenze, na Itália, em 2008.


Meu carimbo "Ex-Libris".



Outro ítem essencial para o leitor tradicional, daqueles que prezam sua biblioteca, é o carimbo de "Ex-Libris". A expressão latina pode ser traduzida como "livros de" ou "biblioteca de". Ou seja, indica quem é o dono do livro. É aquela etiqueta, ou carimbo, colada geralmente nas primeiras folhas de um livro, podendo, através de uma imagem ou texto, indicar a profissão e os gostos do dono do livro, bem como até um (nem sempre) discreto lembrete a um eventual surrupiador da obra. O ex-libris do desenhista e caricaturista francês Gus Bofa (1883-1968), por exemplo, indagava sarcástico: "Esse livro pertence a Gus Bofa. / O que está fazendo aqui?".



Minhas escaletas cheias de livros.



O leitor contumaz é sobretudo um recluso. Fico abismado em ver que a “garotada” de hoje nunca leu um livro na vida, eles não sabem falar, não sabem escrever, é um horror. Não tenho grandes esperanças nas gerações vindouras. Parece que cada vez mais estamos cercados de idiotas ignorantes.

Mas, a vida pode sempre nos surpreender. Uma prima de minha esposa, uma garota de 15 anos, é uma dessas gratas descobertas. Já é uma leitora compulsiva. Um viciado sabe reconhecer o outro. Apesar de não ter havido um grande estímulo por parte da escola ela descobriu a leitura e sua magia. Fiquei encantado com isso. Gostaria de ter uma filha assim.

Da mesma forma que pessoas abriram suas bibliotecas para mim quando jovem pretendo servir de cicerone e guia de minhas estantes para a jovem Isabella.

Devo tudo o que sou hoje aos meus anos de formação no Colégio Salesiano. Tive grandes Mestres, daqueles catedráticos que hoje não existem mais. A saudosa Mestra Vera, minha professora de Literatura, Gramática e Redação, o bom e velho Mestre Mardônio, que é responsável pelo meu amor pela História, os professores Chico, Oswaldo, Antônio e tantos outros. Meu saudoso professor de Latim, Mestre Osvaldo, que saudade.

Mas foi a querida dona Tereza me apresentou aos livros, e isso foi a coisa mais fantástica que alguém poderia ter feito por mim. Ela, que tanto me incentivou, foi minha companheira de anos e anos de leituras. Devo muito a ela.

Dizem que você pode conhecer um homem pelos livros que ele lê. Acredito que, de certa forma, isso é verdade. Alguém que tiver a chance de observar minhas estantes acabará descobrindo minhas paixões, minhas crenças e minhas predileções. Aqui vale outro comentário, adoro quando recebo visitas que ficam olhando minhas estantes, coisa rara. Felizmente temos vários bons amigos que compartilham essa paixão. Nem preciso dizer que para mim o melhor presente é um livro, ou muitos.

Gostaria de dedicar esse post de minhas reminiscências literárias à jovem Isabella. Tenho escrito pouco no blog, reclamo que quase ninguém lê. Mas conversando com ela voltei aos meus 15 anos, naquela mesma empolgação e urgência literária que parecia nunca ter fim. Vi o mesmo brilho nos olhos que eu também tinha.

Temos vivido dias desleais, tristes e um tanto melancólicos. Mas, nessa madrugada estou com sentimentos mais alvissareiros. A jovem Isabella me deixou feliz. Fico torcendo para que existam muitas outras como ela.

Vou dormir com o dia amanhecendo, mas nem tudo está perdido, e temos muito ainda por fazer...

Encerro inspirado pelos versos de Fernando Sabino, que falam do encontro marcado que todos temos com essa coisa complicada e dura que é a vida...


“De tudo ficaram três coisas... 

A certeza de que estamos começando... 

A certeza de que é preciso continuar... 

A certeza de que podemos ser interrompidos 
antes de terminar... 

Façamos da interrupção um caminho novo... 

Da queda, um passo de dança... 

Do medo, uma escada... 

Do sonho, uma ponte... 


Da procura, um encontro!”